Tem mundo demais dentro da gente

Uma vez li, num epitácio de um livro da Adélia Prado acredito, um pedido ao corpo: engorde-me, me torne espessa, faça minha alma menos pungente. E se as camadas que criamos em volta de nós pudessem nos proteger, Adélia? E se pudéssemos nos esconder dentro do corpo, como bichos num casco? E se colocássemos camadas e camadas de roupas e elas nos protegessem como num útero, fechado, escuro, quieto: nossa alma sentiria menos as dores da vida? Se ainda fôssemos crianças, se ainda tivéssemos nossas mães conosco, não falecidas, não distantes...se ainda dormíssemos na cama de nossos pais...não sentiríamos esse peso adulto a esmagar nossas cabeças, ombros, a arrebentar nossas pernas e pés?

Essa dor nas costas, Adélia...ela sumiria? O peso de toda a responsabilidade de cuidar sozinhos de nós mesmos. Dos velhos. Cuidar dos que se vão. Escolher caixões. Pagar cartões. Cuidar das crianças. Comer a comida que se fez, beber pra suportar a vida toda passar diante de nós e nos exigir força. Você é adulto, cresça. O mundo é nosso, disseram. Estamos aqui, olhando pra ele, esperando que nossas mães ainda nos digam o que fazer. Mas elas não dizem. Elas perguntam, agora.

 -- Filho, o que eu faço? E estamos sozinhos nas decisões. E a cada ano, estaremos mais. As pessoas se vão, como folhas. Eu olho no horizonte procurando a mim mesma, e encontro amizades que tem raízes imensas. São árvores solitárias num canavial. Aquela árvore ali, enraizada, forte, segura, para onde sempre poderemos olhar quando a visão do mar de cana se tornar insuportável aos sentidos. Todos iguais. Tanta dor. E a árvore...vamos até lá. Continua firme. Ela não esmaece, não se vai, não cai. Sentamos embaixo dela, contamos histórias sem sentido, mas com valor. Vão nos ouvir. É a voz de alguém falando. É a história de alguém, se fazendo. E você, expectador, mal sabe a importância de árvore que tem. De ser sempre a mesma mangueira ali, ano após ano, estável, frutífera, o vento te bagunça toda mas teus troncos são imensos, você permanece, acolhe. Tua existência de décadas nos dará força para continuar. Vamos nos levantar, e encontrar o caminho da estrada novamente. Mas não hoje.

Hoje só queremos contar histórias, mil e uma noites divagando, como se as bobagens todas da tua vida tivessem uma importância de seiva. Alimentamos então a confortável ilusão de que não vamos morrer nunca, porque alguém nos ouviu a vida inteira. Existimos.

Um desejo

"O que não sei lhe fazer com o corpo, guardo em minha mente. O que não sei tocar, lamber ou deslizar, penso. Com isso, ora vou disparar bla-bla-blás românticos, ora vou brigar em argumentos infindáveis. Mas e se eu conseguir falar com os lábios? E se lhe pedir para me escutar apenas com sua boca?" Gustavo Gitti, do http://nao2nao1.com.br

Se fosse possível desejar uma coisa para uma relação, eu desejaria jamais discutir ou conversar muito. Eu acredito na força e na eternidade da palavra, mas sempre preferi os livros aos saraus. Palavra declamada não é comigo.

Eu acho que nunca, nada, nenhuma só palavra sobre o amor vale mais a pena que a própria existência do amor. Uma existência em si mesmo. Um amor não dito, não explicado. Não há nada que eu possa dizer a quem amo, mas há infinitas coisas que eu possa fazer.

Posso te levar pra casa depois de uma bebedeira brava. Posso ouvir sua avó me contar como foi a vida dela. Posso deixar você dormir em paz. Esfregar meus pés nos seus. Cozinhar pra você.

Conheço muita gente que fala demais, e eu mesma sou um terrível exemplo. Porém, a cada dia quero mais silêncio, pois enquanto falo, não te beijo, enquanto falo, confundo, enquanto falo, calo outras coisas que fazem mais sentido.

O silêncio

Toda vez, é assim. Quando a vida urge, o blog cala.

Pode parecer que gosto de falar, mas não. Então se vivo plenamente, as palavras somem de mim. Minha energia fica concentrada na vida real e sumo.

Não é por mal, é simples: é preciso viver aqui fora. E tem vez que não dou conta desta vida dupla, de viver e escrever.

Tive vontade real de fechar o blog, tirar do ar, até os textos antigos. No fim, a preguiça e a dúvida não me deixam. São tão poucos os amigos leitores, mas tão fiéis, que resolvi ser fiel a vocês e deixar estas palavras virtuais ficarem onde estão.

Unhas roídas



Os melhores escritores que conheço eram pessoas angustiadas. O medo, a aflição geram muitos e belos poemas. Não sou poeta, não sei fazer canções. E a aflição não me guia nesta vida.

O medo, sim. Medo de ser feliz, especialmente. Medo de me olharem doído. Medo de fazer mal.

Criada com as freiras... eis no que deu. Uma imensa culpa católica dolorida, fazedora de textos. Fazedora de unhas roídas. De dentes roídos e camas amassadas. De textos censurados, apagados.

Pra se libertar eis a receita: sobre no morro mais alto, da cidade mais limpa e gelada. Respira tão fundo que se possa ouvir de longe. Quando o ar gelado se tornar insuportável dentro de você, GRITA.

O medo passa. Viu?

Carlos, sempre me salvando o dia...

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.


Carlos Drummond

Filme



Ando de bicicleta como quem assiste um filme sem controle remoto nas mãos. Não dá tempo de voltar. Não consigo parar para ir ao banheiro. Entro nas ruas que me agradam, e também naquelas onde algo me dá náuseas. Corro a cidade na contramão, desviando de outros como eu, de pessoas andando lentas, crianças e bolas.

De vez em quando brinco de pilotar e rasgo o chão. Finjo que tenho dez anos e que aquelas três ruas são o que falta para eu chegar onde começa o arco-íris e onde moram os gnomos. Corro a roleta russa das esquinas: aqui no fim do mundo não existem outros carros, só eu.

Quase atropelo um velho. Ele mal se importa. Vejo as filas no hospital, coitados. Acelero. Vendedores à toa cuidam das portas e da minha vida. Pisco brincando. Ninguém me vê.

Entreabertos, vejo os bares e putas deitadas nas mesas de sinuca. Uma delas quase dorme. A outra, me olha e lembra que gostava de andar de bicicleta com aquele filho da puta do seu pai.

A areia me escorrega, derrapo. Mas continuo correndo e sentindo a cidade que corre em mim.

Namoradas



Tá certo que foi rápido, tá certo que era pra você ficar comigo. Mas terminar o namoro no dia 12 de junho não me pareceu a coisa mais certa a fazer. Ela iria te odiar pra sempre. Avisei. Não teve jeito. Acabou, você disse.

Inventei um rosto pequeno pra ela. Em meus pensamentos, ela era mignon, tinha olhos escuros e cabelos marrons, sempre me olhando meio ressabiada. Aquele dia nossa viagem de ônibus demorou, nossa carona demorou, e nossa tarde ia já acabando quando vi teus amigos pela primeira vez. Fumavam uns cinco sentados no chão. Bigode. O Pizza. Juca. Gordo.

- E eu sou a Ju-li-a-na - me disse com todas as letras bem pronunciadas, evitando o apelido, me olhando com olhos verdes imensos.

Era ela, então. Enorme. Ruiva. Preenchendo a calçada com um sorriso branco, largo e bonito.

Não tinha coragem de te olhar muito. Soltei minhas mãos das dele, como que por respeito. E você contava histórias pro pessoal, fumava e bebia com leveza. Estava se divertindo um pouco com meu mau jeito.

Precisava pegar uma cerveja, fazer qualquer coisa com as mãos. No balcão, minha garrafa já comigo, te olhei sentada no chão, o namorado mais ao longe espiando. Foi o tempo de respirar fundo e a garrafa explodiu. Em cima de mim. Acima de você. Muita espuma deslizando bonito e diretamente rumando pra sua cabeça ruiva. Não tive reação. Não me movi. Todos nos olharam esperando teus gritos e teus tapas. Eu corri os olhos para o rapaz, olhos arregalados do choque, tirou a garrafa da boca e permaneceu com ela aberta.

Olhei pra baixo em pânico. Ia se levantar. Ia gritar comigo. Ia sair chorando. Esperei tudo de você nos três segundos que ficamos paradas nos olhando.

Mas, você olhou pra cima e... riu. Gargalhou. Mostrou o resto dos dentes grandes numa risada ótima que quase me fez chorar. Eu me sentei na poça ao teu lado e rimos juntas, muito, pela primeira das muitas tardes que passaríamos juntas.

Eu aprendi a gostar de você e a sentir tua falta. Você aprendeu a respeitar o que acontecera, tirou a culpa de cima de meus ombros e me deu de presente uma amiga.

Lembra quando o namoro acabou? Te procurei pra dizer que agora sim, entendia você. E, bebericando sentada na tua cozinha, te falei:

- Poxa, cara difícil, não?
- Por isso terminamos - e sorriu.

Chegadas



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I

Enquanto chacoalhava migalhas de pão, me peguei pensando em você. Tão do lado, tão perto, e eu pensando abstrata. Eu dobrei a toalha da mesa com atenção, ergui os olhos e olhei através de você. Vi teu rosto refletindo o brilho da televisão. Te olhei inteiro, desatenta. Costas arqueadas na tua cama de flor marrom. Você olhou pra mim, sorriu e virou-se de novo. Um olhar de cinqüenta anos - pensei. Tua calma imensa me acudiu.

É estranho o dobrar-se. Num dia estamos negando a chave da porta. Estamos trancados, achando que isso é liberdade. Noutro dia arrombam nossa porta com um grampo de cabelo e nos vemos dobrando toalhas, dobrando-se ao meio, lavando cabelos, comendo do mesmo prato, brincando na mesma terra. Contemplo, silenciosa, o origami genial que você faz de mim desde que chegou.

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II

Apesar da tarde bonita e das pessoas ao meu lado, eu estava inquieta. Eu não sabia muito bem, mas o medo da tua chegada já estava entranhado em mim. Eu andava e olhava a multidão. Talvez você viesse. Talvez você apontasse. Talvez eu não soubesse o que fazer. Talvez você chorasse ao me ver. Me odiasse pela primeira e última vez.

Nem tão distraída assim, te vi. Você, não. Não tão longe, caminhava em minha direção certeira. Meu coração paralisou meu rosto, roubando-lhe o sangue. Pensei em fugir. Tinha um minuto. Meus olhos molharam e não consegui achar o caminho fora de mim. Não houve mais tempo pra bolar soluções malucas. Você estava a dois passos de mim e parou.

Te olhei por longos dois segundos. Você não desviou os olhos. Meu estômago retorceu de medo da tua coragem. Sentando no chão sem saber se ele ainda estava ali, te olhei fundo e disse a coisa mais besta do mundo:

- Oi. Que chinelo bonito este seu.

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Obrigada!



A todos que foram a festa, obrigada!

Pelos livros arrecadados, obrigada!

Pelo som lindo!

Pela lua linda!

Por tanta gente, tanta árvore, tanta poesia, tanto amor!

Sono

Hoje debaixo daquela árvore imensa, deitada com as pernas cozinhando ao sol, mãos cobrindos os olhos, ouvi pertinho uma sequencia bonita de notas. Não abri os olhos
imediatamente: adivinhei.

Os músicos todos que me desculpem, mas trompete ainda continua sendo o instrumento mais bonito que conheço. O moço ensaiava ao sol, a partitura na estante voando, uma cara concentrada. Ao longe, uma guitarra acústica soava brasileira. E eu me ajeitei no banco, pus a mochila embaixo da cabeça, deitei e dormi um sono de anos.

Enquanto dormia, sonhava que as folhas que caiam sobre mim eram bençãos e que aquele trompete ali era a forma de deus existir e me lembrar que nada, nada tem importância maior que estar viva. E pronto.

Só por hoje, nada, nada tem qualquer importância. Eu sorrio sonhando e o trompete toca até o fim dos tempos. Acordo e faço uma lindissíma tarde de inverno nascer em mim.